Assunto que ganhou destaque na imprensa nas últimas semanas diz respeito ao uso de animais vivos em pesquisas científicas. O tema vem ganhando ampla cobertura da mídia desde a invasão ocorrida no Instituto Royal (São Roque/SP), na madrugada de 18 de outubro p.p., onde ativistas em favor dos Direitos Animais resgataram 178 cães da raça beagle e 7 coelhos, que eram utilizados em experimentos científicos.
De acordo com os ativistas, a invasão e o resgate foram necessários porque tais animais eram submetidos a práticas que configuram o crime de maus-tratos, previsto no artigo 32 da Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais).
Adicionalmente, outra prática que configura o crime de maus-tratos é a realização de experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos (art. 32, §1º, da Lei 9.605/98).
De outro lado, a criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica possuem regramento. A Lei Federal nº 11.794, de 08 de outubro de 2008 (chamada “Lei
Arouca”) regula a prática da vivissecção (do latim vivu seccione – “cortar vivo”) e outras formas de experimentos realizados em animais vivos.
A Lei Arouca trabalha com o conceito dos 3Rs: reduction (redução), refinement (refinamento) e replacement (substituição). Determina a redução do número de animais utilizados em pesquisas. Determina o refinamento das técnicas empregadas nos experimentos. Determina a substituição do uso de animal por outro método científico que dispense o seu uso. Não é difícil constatar que, para os animais, só interessa 1R, qual seja, replacement (substituição). De qualquer forma, além do “convencional” crime de maus-tratos, previsto no caput do art. 32 da Lei 9.605/98, sempre que as determinações impostas pela Lei nº 11.794/08 não forem observadas no âmbito de um experimento, restará configurada a outra modalidade do crime de maus-tratos, prevista no §1º do art. 32 da Lei 9.605/98.
Vale registrar que, no Brasil, somente é obrigatória a experimentação animal em pesquisas
de medicamentos. Em se tratando de cosméticos, as pesquisas com animais são facultativas,
motivo pelo qual algumas empresas brasileiras, utilizando-se de métodos substitutivos, fabricam seus produtos sem testar em animais (os chamados produtos “livres de crueldade”).
Diferentemente da política adotada no Brasil, a União Europeia proíbe expressamente testes de cosméticos em animais.
Ocorre que, ao lado da discussão jurídica acerca desta temática, há questões científicas e
morais que merecem debate mais aprofundado. Muito embora parcela da comunidade científica alegue que o uso de animais não humanos ainda é necessário para o avanço da ciência, outra parcela sustenta justamente o oposto, afirmando que o conhecimento científico avançaria em maior grau e velocidade se tal uso fosse proibido, incentivando os pesquisadores na criação de outros métodos substitutivos.
Em verdade, já existem inúmeros métodos substitutivos ao uso de animais. De acordo com
o biólogo Sérgio Greif, um dos maiores especialistas na área, métodos substitutivos podem ser definidos como o conjunto de métodos de pesquisa e ensino que permitem atingir determinado objetivo sem fazer uso prejudicial ou invasivo de animais, sendo exemplos: Ciência in vitro, Estudos clínicos de pacientes reais, Estudos em cadáveres de humanos e animais e de material de necropsias, Estudos de material de biópsias e extrações, Utilização de outros materiais biológicos, Dissecação não invasiva, Estudos epidemiológicos, Simulações computacionais, Farmacocinética, Treinamento em ambientes virtuais, Utilização de modelos matemáticos, Utilização de métodos físico-químicos, Mecânica quântica e biofísica molecular, Utilização de modelos mecânicos e manequins, Utilização de recursos audiovisuais, Nanotecnologia, Utilização de outros métodos que venham a ser implementados.
Outro argumento científico que desaconselha a utilização de animais em pesquisas científicas diz respeito à possível ineficiência de seus resultados práticos. É que, em muitos casos, tendo em vista que o funcionamento do organismo de um animal, diante de diferentes estímulos e substâncias, nem sempre responde da mesma forma que o organismo de um humano, somente pesquisas executadas diretamente em seres humanos seriam fidedignas. Já do ponto de vista ético, a questão é ainda mais delicada. Há tempos a ciência já comprovou que os animais – assim como os humanos – são seres sencientes, isto é, possuem capacidade de percepção das mais diferentes sensações: dor, fome, medo, frio, calor, estresse, tristeza, etc.
Reforçando ainda mais a necessidade de respeito à vida, à integridade física (e psicológica)
e à liberdade dos animais, um grupo formado pelos mais renomados neurocientistas da
atualidade recentemente concluiu que, mais do que senciência, os animais – também como os humanos – possuem consciência.
Tal conclusão foi externada na publicação intitulada “Declaração de Cambridge sobre
Consciência em Animais Humanos e Não Humanos”, em que os neurocientistas relatam ter encontrado também nos animais não humanos os substratos neurológicos que geram a consciência.
Portanto, do ponto de vista moral, partindo-se da premissa de que os animais também são
seres sencientes e conscientes, nada justifica o seu uso em experimentos científicos, ainda que inexista método substitutivo para o desenvolvimento de determinada pesquisa. Neste sentido, na hipótese de não existir determinado método substitutivo, a única forma ética de se fazer a pesquisa é procurar, primeiro, desenvolvê-lo.
Por outro lado, o que impede que a comunidade científica e a população em geral considerem a senciência e a consciência como elementos suficientes ao impedimento de
pesquisas em animais não humanos é a nossa prevalente cultura especista e antropocêntrica.
O Especismo (termo criado na década de 70 pelo psicólogo britânico Richard Ryder) pode
ser definido como sendo a discriminação efetuada pelo homem contra as outras espécies. A espécie humana se coloca hierarquicamente acima de qualquer outra espécie animal, algumas vezes escolhendo quais espécies irá proteger e quais ela irá explorar (o que varia de uma cultura para outra).
Outros “ismos” também já foram tidos como aceitáveis em outros tempos: racismo, machismo, sexismo. Mas a sociedade avança e passa a não mais aceitar certas discriminações.
Qual a justificativa para se discriminar outro ser só porque ele pertence a uma outra espécie?
Partindo desta infeliz lógica especista e antropocêntrica, os seres humanos continuam realizando experimentos em animais não humanos, alegando que tal ato é “um mal necessário”.
Tudo é feito em nome do “avanço da ciência” e dos possíveis benefícios a serem obtidos para a humanidade, sem se preocupar com os meios utilizados para tanto. A ciência emprega, lamentavelmente, a máxima de que “os fins justificam os meios”.
Vale dizer que os ativistas pelos Direitos Animais também são favoráveis ao avanço da ciência. Também querem a descoberta da cura do câncer e de outras doenças. Também querem que a ciência traga mais saúde e conforto para a vida dos seres humanos. Entretanto, os ativistas querem que tudo isso ocorra de forma ética, respeitando a vida, a integridade física (e psicológica) e a liberdade de TODOS os animais. Amor, compaixão, paz (não violência). É pedir muito? Já passou da hora de o ser humano fazer o exercício mental de se colocar no lugar dos animais e, a partir de então, refletir sobre a forma como estes são explorados, sobre as sensações vivenciadas e sobre as consequências advindas. Para um ser que se diz racional, é tão difícil assim se colocar no lugar do outro?
Todo animal, humano ou não humano, possui idêntico interesse, qual seja, preservar sua
vida, sua integridade física (e psicológica) e sua liberdade. Este ponto em comum tem como
fundamento os fenômenos da senciência e da consciência. Não importa se os animais falam,
pensam ou raciocinam. Importa apenas que eles sentem. O Especismo simplesmente ignora este aspecto, que deveria ser o único a ser levado em consideração.
Portanto, animais humanos e não humanos, especificamente no que se relaciona à senciência e à consciência, deveriam ser tratados da mesma forma (Princípio da Igualdade).
Indago. Será que os humanos iriam achar ético ou que é “um mal necessário” se outra espécie (ou ser extraterrestre) realizasse experiências científicas que lhes infligissem dor e
sofrimento, ainda que isso trouxesse benefícios incalculáveis a quem os utilizou como “cobaias”?
Ou os humanos achariam que tal espécie (ou ser extraterrestre), por saber que a espécie humana é senciente e consciente, deveria adotar uma forma ética de se fazer ciência, a partir do desenvolvimento de “métodos substitutivos ao uso de humanos na pesquisa”?
Se um dia o ser humano for mesmo subjugado por outra espécie (ou por ser extraterrestre), espero que os biotérios que criem os “homens de laboratório” ao menos adotem uma política de “regras de bem-estar”, com direito a alimentação balanceada e de qualidade, ambiente climatizado e higienizado, com emprego de métodos alternativos (2Rs: redução e
refinamento) e, o mais importante de tudo, com direito a um final feliz: um belo de um “abate humanitário”.
Para mais informações sobre métodos substitutivos: www.1rnet.org
Para mais informações sobre o caso do Instituto Royal: www.vista-se.com.br/aovivo
Para mais informações sobre Direitos Animais: www.direitosanimais.org
Autoria: Mauro Cerri Neto e Silvia Turolla Mileo Garcia; advogados; membros da Comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da OAB de Rio Claro; voluntários da ONG Vira Lata Vira Vida.